O enigma de Fahrenheit
Kelvin
adentrou a escola, percebeu uma movimentação que se fazia no pátio.
O silêncio ainda reinava, mas dali a pouco o ambiente estaria cheio
de crianças e adolescentes correndo e andando de um lado para outro.
O reino da meninada. Achou conveniente assinar o ponto, melhor seria
garantir o dia. Já se ouviu falar em caso de funcionário de
repartição que facilitou desatento, e o pecúlio tornou-se um
pesadelo para a viúva.
À
porta da secretaria uma mãe conversava com a diretora Gertrudes, que
era toda ouvidos a escutar as lamentações da mulher. Ele olhou para
a parede defronte, onde se encontrava afixado, por trás de duas
bandeiras, a placa inaugural da escola, e, ao lado, um quadro, desses
medíocres que se compra em lojas promocionais, com a fotografia da
professora que dera nome a escola. Contraiu a boca com ar de
desaprovação. Pensou no fato de os docentes só terem
reconhecimento depois de mortos – Agora Inês é morta – e ali
estava Magna Mater, com suas congratulações. As letras prateadas da
placa traziam nomes de autoridades. Agora jaz. Agora, nome de escola.
Ele por um instante fitou-a, viu que havia nela certa vivacidade no
olhar e um semblante como que a sorrir. Vivacidade essa que muitas
vezes não se notava nem em alguns supostos viventes. Há quem esteja
morto antes mesmo de descer à sepultura, pensou.
Atravessou
o pátio, iniciou a subida da escada que dava no piso superior. A
professora Odaravla, descia os degraus com trajes de festa junina,
carregando uma caixa cheia de bandeirinhas. Trazia no olhar certa
ingenuidade, um sorriso daquelas pessoas que ainda possuem um fio de
esperança. De fato, era muito jovem e ativa. Sempre empenhada em
alguma tarefa, não parecia se deixar envolver por fatores externos.
A quem o mundo ainda não pingara o fel dos dias, e as convicções
da vida. Tinha uma flexibilidade juvenil, um andar suave, um jeito
sutil. Para afacilitar a pronúncia de seu nome, que mais parecia
tcheco, todos a tratavam por Odara. Odara, como na música de um
compositor baiano que dizia que tudo era divino e maravilhoso, sua
presença suscitava leveza e harmonia. “Deixa
eu cantar, que é pro mundo ficar Odara, minha cara, minha cuca ficar
Odara, pra ficar tudo joia rara, qualquer coisa que se sonhara”.
Kelvin a acompanhou com os olhos, enquanto descansava os braços
sobre o joelho a retomar o fôlego para vencer a subida dos próximos
patamares.
Retirou
de uma caixa os objetos, canetas, pincéis, tintas, colocou tudo
sobre a mesa. Deitou sobre ela um grande papel no qual seria feito o
desenho do tapete de Corpus Christi. Começou a projetar com o lápis
o desenho. Imaginou como ficaria aquela imagem estendida no chão,
com tantas outras. Corpus Christi, corpo de Cristo. Lembrou que se
tratava de um evento católico. Recordara a última discussão que
participou acerca de uma escola laica. Não quis despender energia a
pensar na questão, que cada qual pintasse o mundo a sua maneira.
Somos todos irmãos, tanto para as religiões como no campo
fisiológico. Porém, se há mistérios entre o céu e a terra, que
os interpretem o físico e o religioso.
Nesse
momento alguém ligou um aparelho de som na quadra, ecoou o tinido de
uma música ao fundo, parecia uma batida da moda, com certo apego a
melodia, frases em tom de sensualidade. Pensou que o mesmo ambiente
podia dar-se ao profano e ao sagrado. A humanidade era uma dualidade
entre o céu e a terra. Buscou simetria no quadro enquanto
cantarolava uma canção popular “A
raça humana é uma semana do trabalho de Deus/ A raça humana é a
ferida acesa, uma beleza, uma podridão… A raça humana risca,
rabisca, pinta, a tinta, a lápis, carvão ou giz… Nessa semana
santa, entre parênteses...
Continuou
a dedicar-se aos traços, riscos que eram um ensaio ao desenho
original. A mão correndo sobre o papel, o lápis, a ponta do lápis,
os traços mais vivos, outros mais sutis. A forma ia surgindo ao
mesmo tempo em que se ouvia o barulho de crianças brincando e de
adultos submergidos num diálogo interminável. Agora outra música
soava, era uma melodia chorosa em que se sobressaia o ritmo do fole.
Parecia um forró antigo daqueles que se dançavam nos interiores.
Aos poucos a imagem ganhava vida; pincéis e tintas sobre os
contornos, um arco-íris, amarelos, azuis, Van Gogh, Romero, Frida,
amores vãos, amores opacos, opacos, escuros. Um escuro não tão
escuro. Um escuro como o entardecer. Vislumbrou na prateleira um
título, Cascudo… Câmara, Câm…, Câmara Cascudo: contos
tradicionais do Brasil… tradicionais do Brasil, onde... aquele
conto do menin...
De
repente, uma sombra tomou forma substancial, um espectro do tamanho
de uma criança parecia andar em sua direção. Vários outros
surgiam. Um exemplar da tragédia Hamlet, de Shakespeare, caiu da
estante, abriu-se. No mesmo instante, quase que inacreditavelmente,
surgia diante dele o príncipe Hamlet. Aproximando, a aparição
tentava falar-lhe, porém um esparadrapo tapava a sua boca. A um
canto, o rei Hamlet jazia deitado e morto. Kelvin recordou da cena
que assistira no filme. O enredo vinha a sua mente. O rei destronado
por conta da traição do próprio irmão, Cláudio. A tomada do
reino, o envenenamento, a morte. A rainha, enganada, casara-se com o
usurpador. Só o príncipe Hamlet sabia, só ele enxergava. Há algo
de podre no reino da Dinamarca.
O
professor retornou do pensamento, agora quem estava ao seu lado era o
próprio Cláudio. Com um largo sorriso, trazia nas mãos uma espécie
de vasilha. Kelvin desviou o olhar para a esquerda, e a primeira
sombra agora era um menino que sentou diante dele e desatou um riso
estridente. A outro canto Hamlet travava uma luta com Laertes, que
também persuadido por Cláudio, tentava matá-lo. No entanto, no
lugar de espadas o duelo se dava com livros caídos da estante.
A
senhora do quadro chamava-o em outro canto, como a pedir ajuda, pois
seus olhos eram tristes e já não trazia o mesmo sorriso da
fotografia. De pé, ao seu lado, um homem engravatado portava em uma
das mãos a placa de prata e na outra havia uma corda. Avançou em
direção a Kelvin, dominou-o, amarrou-lhe os braços e as pernas,
enquanto Cláudio, o traidor, tentava pingar a substância contida na
vasilha em seu ouvido. Kelvin tentou empreender um grito, que não
saiu de sua boca. Lutava para desvencilhar-se daquele ambiente, mas
não conseguia. O menino continuava a rir muito alto. Como se o chão
estivesse aberto, olhavam também para ele as demais crianças do
andar inferior e os adultos, ora falavam entre si, ora gritavam
xingamentos.
Preso
a cadeira, olhou para a senhora do quadro novamente, como a
suplicar-lhe ajuda. Não conseguia falar. Sentia seu corpo
paralisado, como se estivesse congelado. Se ela pudesse tirá-lo
dali! Estava frio! Estava muito frio! Um pouco de calor humano! Todos
os fantasmas agora gritavam:
-
Ela está morta! Ela está morta!
Fechou
os olhos, não queria ver; não queria ser.
“Ser
ou não ser, eis a questão.
Será
mais nobre sofrer na alma
Pedradas
e flechadas do destino feroz
Ou
pegar em armas contra o mar de angústias
E,
combatendo-o, dar-lhe fim?
[...]
A
afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As
pontadas do amor humilhado,
as
delongas da lei,
A
prepotência do mando, e o achincalhe
Que
o mérito paciente recebe dos inúteis,”
[...]
William
Shakespeare ( Tradução de Millôr Fernandes)
Num
súbito, acordou. O silêncio pairava. Riu-se no canto da boca.
Guardou o material, pegou sua velha mochila e saiu discretamente.
Shakespirro
do Nordeste