quarta-feira, 21 de junho de 2017

O enigma de Fahrenheit



O enigma de Fahrenheit


Kelvin adentrou a escola, percebeu uma movimentação que se fazia no pátio. O silêncio ainda reinava, mas dali a pouco o ambiente estaria cheio de crianças e adolescentes correndo e andando de um lado para outro. O reino da meninada. Achou conveniente assinar o ponto, melhor seria garantir o dia. Já se ouviu falar em caso de funcionário de repartição que facilitou desatento, e o pecúlio tornou-se um pesadelo para a viúva.

À porta da secretaria uma mãe conversava com a diretora Gertrudes, que era toda ouvidos a escutar as lamentações da mulher. Ele olhou para a parede defronte, onde se encontrava afixado, por trás de duas bandeiras, a placa inaugural da escola, e, ao lado, um quadro, desses medíocres que se compra em lojas promocionais, com a fotografia da professora que dera nome a escola. Contraiu a boca com ar de desaprovação. Pensou no fato de os docentes só terem reconhecimento depois de mortos – Agora Inês é morta – e ali estava Magna Mater, com suas congratulações. As letras prateadas da placa traziam nomes de autoridades. Agora jaz. Agora, nome de escola. Ele por um instante fitou-a, viu que havia nela certa vivacidade no olhar e um semblante como que a sorrir. Vivacidade essa que muitas vezes não se notava nem em alguns supostos viventes. Há quem esteja morto antes mesmo de descer à sepultura, pensou.

Atravessou o pátio, iniciou a subida da escada que dava no piso superior. A professora Odaravla, descia os degraus com trajes de festa junina, carregando uma caixa cheia de bandeirinhas. Trazia no olhar certa ingenuidade, um sorriso daquelas pessoas que ainda possuem um fio de esperança. De fato, era muito jovem e ativa. Sempre empenhada em alguma tarefa, não parecia se deixar envolver por fatores externos. A quem o mundo ainda não pingara o fel dos dias, e as convicções da vida. Tinha uma flexibilidade juvenil, um andar suave, um jeito sutil. Para afacilitar a pronúncia de seu nome, que mais parecia tcheco, todos a tratavam por Odara. Odara, como na música de um compositor baiano que dizia que tudo era divino e maravilhoso, sua presença suscitava leveza e harmonia. “Deixa eu cantar, que é pro mundo ficar Odara, minha cara, minha cuca ficar Odara, pra ficar tudo joia rara, qualquer coisa que se sonhara”. Kelvin a acompanhou com os olhos, enquanto descansava os braços sobre o joelho a retomar o fôlego para vencer a subida dos próximos patamares.

Retirou de uma caixa os objetos, canetas, pincéis, tintas, colocou tudo sobre a mesa. Deitou sobre ela um grande papel no qual seria feito o desenho do tapete de Corpus Christi. Começou a projetar com o lápis o desenho. Imaginou como ficaria aquela imagem estendida no chão, com tantas outras. Corpus Christi, corpo de Cristo. Lembrou que se tratava de um evento católico. Recordara a última discussão que participou acerca de uma escola laica. Não quis despender energia a pensar na questão, que cada qual pintasse o mundo a sua maneira. Somos todos irmãos, tanto para as religiões como no campo fisiológico. Porém, se há mistérios entre o céu e a terra, que os interpretem o físico e o religioso.

Nesse momento alguém ligou um aparelho de som na quadra, ecoou o tinido de uma música ao fundo, parecia uma batida da moda, com certo apego a melodia, frases em tom de sensualidade. Pensou que o mesmo ambiente podia dar-se ao profano e ao sagrado. A humanidade era uma dualidade entre o céu e a terra. Buscou simetria no quadro enquanto cantarolava uma canção popular “A raça humana é uma semana do trabalho de Deus/ A raça humana é a ferida acesa, uma beleza, uma podridão… A raça humana risca, rabisca, pinta, a tinta, a lápis, carvão ou giz… Nessa semana santa, entre parênteses...

Continuou a dedicar-se aos traços, riscos que eram um ensaio ao desenho original. A mão correndo sobre o papel, o lápis, a ponta do lápis, os traços mais vivos, outros mais sutis. A forma ia surgindo ao mesmo tempo em que se ouvia o barulho de crianças brincando e de adultos submergidos num diálogo interminável. Agora outra música soava, era uma melodia chorosa em que se sobressaia o ritmo do fole. Parecia um forró antigo daqueles que se dançavam nos interiores. Aos poucos a imagem ganhava vida; pincéis e tintas sobre os contornos, um arco-íris, amarelos, azuis, Van Gogh, Romero, Frida, amores vãos, amores opacos, opacos, escuros. Um escuro não tão escuro. Um escuro como o entardecer. Vislumbrou na prateleira um título, Cascudo… Câmara, Câm…, Câmara Cascudo: contos tradicionais do Brasil… tradicionais do Brasil, onde... aquele conto do menin...

De repente, uma sombra tomou forma substancial, um espectro do tamanho de uma criança parecia andar em sua direção. Vários outros surgiam. Um exemplar da tragédia Hamlet, de Shakespeare, caiu da estante, abriu-se. No mesmo instante, quase que inacreditavelmente, surgia diante dele o príncipe Hamlet. Aproximando, a aparição tentava falar-lhe, porém um esparadrapo tapava a sua boca. A um canto, o rei Hamlet jazia deitado e morto. Kelvin recordou da cena que assistira no filme. O enredo vinha a sua mente. O rei destronado por conta da traição do próprio irmão, Cláudio. A tomada do reino, o envenenamento, a morte. A rainha, enganada, casara-se com o usurpador. Só o príncipe Hamlet sabia, só ele enxergava. Há algo de podre no reino da Dinamarca.

O professor retornou do pensamento, agora quem estava ao seu lado era o próprio Cláudio. Com um largo sorriso, trazia nas mãos uma espécie de vasilha. Kelvin desviou o olhar para a esquerda, e a primeira sombra agora era um menino que sentou diante dele e desatou um riso estridente. A outro canto Hamlet travava uma luta com Laertes, que também persuadido por Cláudio, tentava matá-lo. No entanto, no lugar de espadas o duelo se dava com livros caídos da estante.

A senhora do quadro chamava-o em outro canto, como a pedir ajuda, pois seus olhos eram tristes e já não trazia o mesmo sorriso da fotografia. De pé, ao seu lado, um homem engravatado portava em uma das mãos a placa de prata e na outra havia uma corda. Avançou em direção a Kelvin, dominou-o, amarrou-lhe os braços e as pernas, enquanto Cláudio, o traidor, tentava pingar a substância contida na vasilha em seu ouvido. Kelvin tentou empreender um grito, que não saiu de sua boca. Lutava para desvencilhar-se daquele ambiente, mas não conseguia. O menino continuava a rir muito alto. Como se o chão estivesse aberto, olhavam também para ele as demais crianças do andar inferior e os adultos, ora falavam entre si, ora gritavam xingamentos.

Preso a cadeira, olhou para a senhora do quadro novamente, como a suplicar-lhe ajuda. Não conseguia falar. Sentia seu corpo paralisado, como se estivesse congelado. Se ela pudesse tirá-lo dali! Estava frio! Estava muito frio! Um pouco de calor humano! Todos os fantasmas agora gritavam:

- Ela está morta! Ela está morta!

Fechou os olhos, não queria ver; não queria ser.

Ser ou não ser, eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias
E, combatendo-o, dar-lhe fim?
[...]
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado,
as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,”
[...]
William Shakespeare ( Tradução de Millôr Fernandes)

Num súbito, acordou. O silêncio pairava. Riu-se no canto da boca. Guardou o material, pegou sua velha mochila e saiu discretamente.


Shakespirro do Nordeste

2 comentários:

  1. Excelente texto, estou tentando resolver o enigma até a agora e ainda nada rsrsrs

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  2. Excelente texto, estou tentando resolver o enigma até a agora e ainda nada rsrsrs

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