sábado, 15 de outubro de 2016

Tia Mires



Tia Mires,


          Hoje sou adulta, quase uma professora. Já se passaram vinte anos, mas acho que você deve se lembrar de uma japonesinha - orientais eram raros em Minas - cuja família precisou mudar-se para o interior de São Paulo no meio do ano. Eu tinha apenas dez anos e a mudança foi uma grande incisão em minha vida. De um dia para o outro me vi só, meu mundo se restringiu a meu pai, minha mãe e meus dois irmãos. Deixei tudo o que amava para trás: os amigos, a escola, o bairro, a casa com o quintal enorme e o balanço de corda no pé de ameixa. Triste é ser criança, que paga pelas decisões dos adultos, sem saber porquê.

          Mas você percebeu como eu me sentiria, antes mesmo da minha partida. Quando soube da mudança, você prometeu escrever-me. E escreveu mesmo! Durante alguns anos foi um grande prazer receber as suas cartas, escritas em sua linda caligrafia de professora. Eu ficava feliz antes mesmo de lê-las, apenas em pegar o envelope na caixinha do correio e ver que era sua. Não me lembro o que eu lhe escrevia, assuntos de criança de dez anos, que você tinha a paciência de ler e responder. Você, que era solteira quando eu parti, uma “tia” linda, dividiu comigo um pouquinho de sua vida. Conheceu um rapaz, namoraram e se casaram. Guardo suas fotos até hoje.

          Eu fui crescendo, fiz novos amigos e fui me adaptando à nova realidade. Adolescente, aos poucos fui deixando de lhe escrever. Agora que estou prestes a me tornar professora, gostaria de lhe dizer que as suas cartas foram muito importantes para mim. Acho que, no fundo, você sabe disso, mas sempre é bom dizer.

          Às vezes sonho que estou indo a pé para a escola. Lembro de cada detalhe daquele caminho: o supermercado Paraopeba, a vendinha onde eu comprava balas. Nessas ruas eu caminhava, vestida com o uniforme da escola, de saia azul-marinho de pregas, camisa branca e “conguinha” nos pés. Já refiz esse caminho muitas vezes em meus sonhos. Mas neles eu nunca chego a escola, o sonho é apenas ir, caminhar, sem nunca chegar ao destino.


Luciana Minami 
4º ano de Letras (UNESP) - 2006

Nenhum comentário:

Postar um comentário